O mercado de trabalho vive uma fase de grande crescimento do trabalho autônomo. Este cenário favorece o surgimento de questionamentos sobre o que pode ser considerado trabalho autônomo de fato e o que deve ser considerado uma relação de emprego, sujeita às normas da legislação trabalhista, notadamente as previstas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). De fato, saber fazer esta distinção é essencial tanto para quem presta serviços quanto para quem os contrata.
Emprego x Trabalho
Antes de prosseguir, é importante fazer uma distinção. Apesar de, na linguagem cotidiana, as palavras emprego e trabalho serem sinônimas, no Direito brasileiro elas possuem significados diferentes. Emprego se refere especificamente às relações de emprego, ou seja, aquelas submetidas às normas trabalhistas, notadamente a CLT, que preenchem os requisitos que são mencionados adiante neste guia. Quando há emprego, via de regra, o trabalhador deve ter sua carteira assinada.
Por outro lado, a palavra trabalho se refere tanto ao que pode ser considerado emprego quanto ao que pode ser considerado mera prestação de serviço por um profissional autônomo. Falando em termos gerais, trabalho é a prestação de serviço de uma pessoa a outra, seja ela regida pela CLT ou não. Assim, todo empregado é trabalhador, mas nem todo trabalhador é empregado; e, da mesma forma, para os fins deste guia, todo emprego é trabalho, mas nem todo trabalho é emprego.
Este guia pretende, portanto, auxiliar na compreensão deste tema, buscando responder às seguintes perguntas:
Quando uma pessoa física presta seus serviços para outra pessoa física ou para uma pessoa jurídica, a relação existente entre o prestador do serviço (o trabalhador) e o tomador do serviço (a pessoa que contrata o trabalhador) será uma relação de emprego se estiverem presentes cinco requisitos, expostos a seguir:
1. O trabalho deve ser prestado por pessoa física, de modo que uma pessoa jurídica (como associação, empresa, EIRELI ou fundação, por exemplo) não pode ser empregada;
O Microempreendedor Individual (MEI), ao contrário do que muitos pensam, não é uma pessoa jurídica, ainda que tenha um número de registro no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica). Trata-se de pessoa física que exerce atividade econômica e que está sujeita a um regime especial de tributação.
2. O trabalho deve ser realizado, pelo trabalhador, com pessoalidade, de modo que ele não pode se valer de outra pessoa para assumir o seu papel;
Se um empregado é contratado, por exemplo, como motorista de uma empresa, ele não poderá enviar uma outra pessoa para que cumpra suas tarefas em seu lugar; ele será sempre o responsável pela execução das atividades ligadas ao seu cargo, não podendo transferi-las a outros trabalhadores.
3. O trabalhador deve exercer suas funções no cargo com habitualidade, ou seja, com frequência constante, por períodos regulares e predeterminados;
Para que o requisito da habitualidade esteja presente, não é necessário que o trabalho seja realizado todos os dias. Basta, neste caso, que os serviços sejam prestados com regularidade, de forma previsível. Não há um parâmetro específico para definir quantas vezes na semana o prestador de serviços deve trabalhar para que se caracterize a habitualidade, já que é necessário observar as especificidades de cada caso; entretanto, muitos se utilizam do disposto na Lei dos Empregados Domésticos (Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015) como parâmetro. No caso dos trabalhadores domésticos, se a prestação do serviço se der por mais de dois dias na semana, existe uma relação de emprego, de modo que o empregado doméstico fará jus a todos os direitos que lhe são conferidos pela lei trabalhista.
4. O trabalho deve ser realizado com subordinação, de modo que o empregador dá ordens ao trabalhador com o objetivo de direcionar a forma como o trabalho é realizado, sendo que o trabalhador não tem ampla liberdade para determinar a forma como suas funções serão cumpridas;
A subordinação do trabalhador pode se manifestar de diversas formas, por exemplo: se ele estiver sujeito a uma hierarquia no ambiente de trabalho, se ele tiver a necessidade de utilizar os equipamentos do empregador (como computadores do escritório, telefones próprios da empresa, etc.), se ele tiver de cumprir as tarefas conforme ordens e comandos específicos, entre muitos outros. A análise da existência da subordinação depende de cada caso.
5. O trabalhador deve ser remunerado de forma regular (mensalmente, quinzenalmente, semanalmente etc.) com um salário, ou seja, com uma remuneração específica, normalmente relacionada à função exercida, ao tempo de serviço e à natureza do trabalho, dentre muitos outros critérios.
Uma vez presentes estes requisitos, está configurada uma relação de emprego, e o trabalhador não poderá ser considerado autônomo. Ou seja: a presença destes requisitos faz com que o trabalhador tenha todos os direitos previstos na lei trabalhista, sendo o empregador obrigado a respeitá-los.
Tais requisitos são analisados diretamente na relação efetiva mantida pelas partes, independentemente daquilo que foi acordado pelas partes no contrato escrito. Em outras palavras, ainda que o tomador do serviço tenha feito com o trabalhador um contrato de prestação de serviços no qual o trabalhador aparece como se fosse autônomo, se os requisitos aqui expostos estiverem presentes, haverá uma relação de emprego.
Em Direito do Trabalho, existe um princípio chamado princípio da primazia da realidade sobre as formas. Segundo este princípio, o que acontece, de fato, na realidade é mais importante do que o que está previsto no contrato. Assim, não adianta simplesmente prever no contrato que não existe uma relação de emprego se ela, de fato, existir.
Um exemplo será capaz de ilustrar melhor o que aqui se está dizendo.
Suponha que Carlos é um jardineiro que se registrou como Microempreendedor Individual (MEI) e firmou contrato de prestação de serviços com Joel, seu patrão. O contrato prevê que Carlos é jardineiro autônomo e contém cláusula expressa prevendo que Carlos não é empregado de Joel, posto que não existe vínculo de subordinação entre eles.
Apesar disso, na realidade, verifica-se que, para executar suas funções, Carlos utiliza as ferramentas fornecidas por Joel, além de ter horário fixo de trabalho e receber instruções sobre como suas atividades devem ser desempenhadas. Além disso, Carlos recebe remuneração fixa, periódica, e trabalha três vezes por semana na residência de Joel, sempre seguindo suas ordens.
Neste caso, ainda que o contrato firmado entre eles diga que não existe uma relação de emprego, fato é que todos os requisitos mencionados anteriormente estão presentes. Assim, Carlos tem todos os direitos que lhe são conferidos pela lei trabalhista, sendo que a cláusula contratual que prevê a inexistência de vínculo de emprego, se contestada na Justiça, não terá qualquer validade.
O trabalho autônomo é a relação de trabalho que não preenche todos os requisitos da relação de emprego. Assim, ainda que estejam presentes alguns dos referidos requisitos, se todos não estiverem presentes, não haverá relação de emprego.
O principal elemento caracterizador do trabalho autônomo é justamente a autonomia. Assim, se o trabalho for realmente autônomo, o trabalhador terá liberdade, por exemplo, para organizar suas tarefas, para distribuir suas horas de trabalho, para escolher as ferramentas a serem utilizadas na execução do serviço ou, em alguns casos, até mesmo para definir o local onde exercerá suas atividades.
Um exemplo de trabalho autônomo é aquele realizado por um programador que é contratado para elaborar um website, como freelancer. Outro exemplo é o trabalho executado por um pedreiro contratado apenas para construir uma parede em uma residência. Neste tipo de situação é comum que pelo menos um dos requisitos da relação de emprego não esteja preenchido, de modo que existe, de fato, trabalho autônomo.
O trabalhador que estiver sujeito a uma relação de emprego (ou seja, o trabalhador que for um empregado contratado por um empregador) terá todos os direitos previstos na legislação trabalhista que lhe forem aplicáveis. Assim, terá, via de regra, direito a ter sua carteira de trabalho assinada, a férias de 30 dias uma vez ao ano, ao recebimento de décimo terceiro salário, ao recebimento de adicional de férias, ao FGTS, ao seguro desemprego, à licença maternidade, à licença paternidade, ao recebimento de horas extras trabalhadas, dentre diversos outros direitos previstos em lei e outros atos normativos.
Aqui são expostos apenas alguns direitos normalmente conferidos aos empregados. É importante ressaltar que, a depender de outros fatores como a função exercida e a modalidade de contratação, é possível que o empregado tenha outros direitos.
Todos os direitos do trabalhador devem ser respeitados pelo empregador, que pode ter outras obrigações, tais como: fornecer equipamento de segurança individual nos casos em que for necessário, manter todos os registros legalmente exigidos que sejam relacionados ao empregado, cumprir todas as obrigações tributárias relacionadas ao empregado, recolher INSS.
É importante ressaltar, porém, que o empregado está sujeito a uma série de descontos em sua folha de pagamento, tais como: desconto relativo à parte do INSS cujo pagamento lhe cabe, imposto de renda retido na fonte e vale-transporte.
Para saber mais sobre quais são, exatamente, os direitos de determinado empregado, as obrigações de determinado empregador e os descontos que devem ou que podem ser realizados em folha de pagamento em um caso específico, o trabalhador ou o empregador interessados deverão buscar um profissional qualificado que possa orientá-lo.
No regime de trabalho autônomo, há uma flexibilidade muito maior, tanto do lado do trabalhador quando do lado do tomador do serviço. Isto porque, por um lado, o trabalhador terá autonomia para trabalhar, e, por outro, o tomador do serviço não terá de seguir normas trabalhistas como as que disciplinam a demissão do empregado.
Só existirá maior flexibilidade, frise-se, se a relação entre trabalhador e tomador do serviço for, de fato, de trabalho autônomo, e não de emprego.
O trabalhador autônomo não tem os direitos trabalhistas previstos em lei, mas pode ter outras vantagens. É possível, por exemplo, que o trabalhador autônomo tenha menos descontos sobre sua remuneração que o trabalhador empregado, dependendo da atividade que exercer e da forma escolhida para levá-la adiante.
Além disso, o trabalhador autônomo pode definir seus horários e suas ferramentas de trabalho, além da forma pela qual o executa.
Quem contrata o profissional autônomo, por outro lado, não tem de arcar com os deveres impostos pela legislação trabalhista, mas continua obrigado a cumprir suas outras obrigações, como as tributárias, que podem ser impactadas pela contratação de um profissional autônomo.
Para o trabalhador, apesar da maior flexibilidade, a relação autônoma é mais instável, justamente porque as garantias previstas em lei para os empregados não lhe são aplicáveis. Assim, por exemplo, o contrato firmado entre ele e o tomador dos serviços poderá definir as regras quanto à rescisão do contrato, sem que haja necessariamente um direito a aviso prévio indenizado tal qual o existente na relação de emprego.
Antes de propor um contrato de prestação de serviço ou um contrato de trabalho ao futuro trabalhador, é importante que o empregador tenha consciência das necessidades envolvidas na função a ser desempenhada pelo contratado. Em alguns casos, em razão da natureza do trabalho, a prestação de serviço pode ser perfeitamente cabível. Em outros casos, porém, é possível que o empregador tenha necessidades que apenas são atendidas pelo trabalho de um empregado regularmente contratado.
Assim, por exemplo, em atividades que envolvem atendimento ao público, para as quais é necessário definir datas e horários específicos de trabalho, é mais indicado contratar um empregado, que estará, assim, sujeito às normas do empregador e poderá, então, cumprir mais estritamente com a dinâmica de seu comércio.
Muito cuidado deve ser tomado, tanto por quem contrata quanto pelo contratado, para que a relação estabelecida pelo contrato de trabalho seja de fato uma correspondência à realidade, não uma simulação que busque meramente se esquivar de encargos trabalhistas.
Segundo a lei, todos os atos que tenham sido praticados com o objetivo de fraudar a aplicação das leis trabalhistas são nulos (ou sejam, não têm validade). Assim, se as partes assinam um contrato de prestação de serviços, querendo fugir dos encargos trabalhistas, tal contrato poderá ser considerado nulo. Nesse caso, presentes os requisitos legais, o período de trabalho será considerado uma relação empregatícia e o empregador deverá arcar com todos os encargos devidos pelo vínculo.
Para mais, o empregador poderá ter que arcar com multas aplicadas pelo Ministério Público do Trabalho e ainda poderá incorrer na prática do crime de frustação de direitos assegurados por lei trabalhista, previsto no art. 203 do Código Penal Brasileiro, que tem por pena a detenção, de um a dois anos, somada de multa.
Nos últimos anos, muitos empregadores têm optado por contratar seus funcionários por meio de uma pessoa jurídica (PJ). Em tais casos, a pessoa contratada abre uma pessoa jurídica que será, em seguida, considerada uma prestadora de serviços do empregador. Assim, ao invés de assinar a carteira do trabalho e recolher os respectivos encargos, o empregador apenas arca com o pagamento da fatura emitida pela PJ de titularidade do trabalhador.
No entanto, se a contratação de pessoa jurídica se der com o único objetivo de mascarar a existência de uma relação de emprego, a prática pode constituir fraude trabalhista, já que, como já foi dito, a relação de emprego é caracterizada pelo que acontece, de fato, na realidade. Assim, se caracterizada a fraude, o empregador poderá estar sujeito a todas as consequências mencionadas acima.